Chico Buarque e Jair Rodrigues - empate e consagração |
2º Festival Nacional da MPB - TV Excelsior (junho, 1966): 1º - Porta-estandarte, de Geraldo Vandré e Fernando Lona, com Tuca e Aírto Moreira; 2º - Inaê, de Vera Brasil e Maricene Costa, com Nilson; 3º - Chora Céu, de Adilson Godoy e Luiz Roberto, com Cláudia; 4º - Cidade Vazia, de Baden Powell e Lula Freire, com Milton Nascimento; 5º - Boa Palavra, de Caetano Veloso, com Maria Odete.
2º Festival da MPB - TV Record (setembro-outubro, 1966): 1º - A banda, de Chico Buarque, com Chico Buarque e Nara Leão; Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, com Jair Rodrigues e Quarteto Novo; 2º - De amor ou paz, de Adauto Santos e Luiz Carlos Paraná, com Elza Soares; 3º - Canção para Maria, de Paulinho da Viola e Capinan, com Jair Rodrigues; 4º - Canção de Não Cantar, de Sérgio Bittencourt, com MPB-4; 5° - Ensaio Geral, de Gilberto Gil, com Elis Regina.
"...1966. Era o meu segundo festival. A Record também já havia feito um festival de música, do qual tomei conhecimento quando já estava contratado, que havia sido organizado por Theófilo de Barros, o pai do Théo Barros. Em vista disso, achei que podia chamá-lo de “Segundo Festival da Música Popular Brasileira”, que acabou ficando conhecido como o Festival da Record.
Ocupei uma das salas de um anexo ao Teatro Record, na rua da Consolação, um prédio antigo de quatro andares, ao lado de um cinema que havia sido adaptado como teatro, para apresentar as atrações que o Paulinho Carvalho contratava. Para minha secretária trouxe Marilu Martinelli, um assistente, Renato Corrêa de Castro, o Renatão, e na assessoria de imprensa o jornalista Alberto Helena Júnior.
Vale registrar que nessa época a revista Intervalo, da Editora Abril, com um enfoque moderno, uma estética fotográfica que valorizava e dava status aos artistas principalmente com uma nova filosofia na apresentação de suas matérias, com abordagem objetiva e charmosa dava destaque à programação produzida em São Paulo. Por ser uma revista de grande vendagem - era um “guia de programação” — teve um peso expressivo na ascensão da TV Record, pela valorização da imagem de seu elenco.
A Record, com o sucesso do “Fino da Bossa”, abriu uma linha de programas musicais e contratou, talvez, o maior elenco de cantores, compositores e músicos jamais reunido por uma emissora de televisão. Semanalmente desfilavam por sua programação os maiores nomes da nova e da velha geração de astros da música brasileira, além de um bando de cabeludos comandados por Roberto Carlos que, nas tardes de domingo, faziam a “Jovem Guarda”. Era fácil trabalhar com música na Record. Quem não estava passava por lá para participar de algum programa.
A fim de facilitar a triagem das músicas do festival, dessa vez permitimos que fossem inscritas em fitas, além de continuar exigindo a partitura, em uma tentativa de limitar o seu número. E esse número seria imenso. Ainda na fase de inscrições, uma nuvem negra no horizonte, mais precisamente nas proximidades do aeroporto, onde era a sede da Record. Os estúdios foram completamente destruídos por um incêndio. A atuação de todos os profissionais foi impressionante. Ainda havia fogo no estúdio quando, sob o comando de Paulinho de Carvalho e improvisando condições que contrariavam todos os manuais técnicos, as imagens foram novamente para o ar. Toda a programação ficou concentrada no pequeno Teatro Record da rua da Consolação.
“Foi-se o festival”, pensei. Mas o Paulinho, com uma determinação contagiante, decidiu manter todos os programas no ar e ainda prosseguir com os projetos em andamento. Para que o trabalho do júri prévio, na seleção das músicas que comporiam o festival, transcorresse sem interferências, resolvi escondê-lo. O pai do maestro Júlio Medaglia, o velho Júlio, nos ofereceu os fundos de sua casa, no Alto da Lapa, onde reunimos time de primeira linha: o professor e poeta Décio Pignatari, o jornalista Sérgio Cabral, os maestros Rogério Duprat e Damiano Cozzella, o pianista César Camargo Mariano, o roteirista e diretor da Record Raul Duarte, o psicanalista e escritor Roberto Freire, além do próprio Júlio.
Se alguém passasse por perto iria achar que lá estava reunido um bando de loucos. Sino, buzinas, chocalhos, bonequinhos de borracha com apitos interrompiam as músicas e serviam para descarregar as tensões de uma forma bem-humorada, a cada vez que algum trabalho que merecesse a classificação de bestialógico era ouvido, o que era rotineiro. A intensidade da manifestação era proporcional à estupidez apresentada. Um estranho bonequinho de borracha com um apito estridente, levado pelo César, que o batizou de “Sdruff’, criou o termo sdrufar que identificava o destino das músicas que mereciam o lixo. Sdrufávamos sem levar em conta a importância de quem assinasse o trabalho.
Os nomes não eram conhecidos durante a triagem, mas eram inevitáveis algumas identificações. Quanto mais conhecido o compositor, maior o rigor com a qualidade. Era um trabalho estafante, recompensado de vez em quando, com deliciosos sanduíches, preparados com carinho por dona Miquellina, regados pelos refrescantes sucos do velho Medaglia, que ao final das sessões nos brindava com uma estimulante batida de limão. Porém, quando aparecia uma música bem trabalhada, em que o talento falava mais alto, a alegria era imensa. Enfim, mais um compositor popular.
Assim, nesse ano descobrimos Martinho da Vila. Em uma fita vinda de Salvador, cantando a música de um tal Antônio Carlos Marques Pinto, que mais tarde faria dupla com o Jocafi, uma excelente cantora, Maria Creuza, imediatamente contratada pela TV Record, e tantos outros. Um novo trabalho de Caetano Veloso, que já havia estado entre os classificados na Excelsior com Boa Palavra, levaria dessa vez o prêmio de melhor letra com Um Dia. Gilberto Gil classificou Ensaio Geral, que daria o prêmio de melhor intérprete para Elis Regina. Mas o que marcou de fato o festival de 1966 foi a disputa entre duas músicas de características bastante diferentes: A Banda e Disparada.
Eu havia aconselhado o Vandré a olhar com carinho para a música sertaneja, e creio que devo tê-lo influenciado para que compusesse Disparada. Difícil foi convencê-lo a não cantá-la. O Vandré, embora tivesse uma boa presença no palco, não era muito conhecido e ainda não tinha cancha suficiente para encarar, em um espetáculo sempre cheio de tensões, uma música que exigia grande força interpretativa. Quando sugeri o Jair Rodrigues, que já era um sucesso no “Fino da Bossa”, a reação foi de incredulidade. Afinal, o Jair era sambista, mas nas horas vagas brincava de cantar canções sertanejas, talvez influenciado pelo seu empresário, o Corumbá, que formava com Venâncio uma dupla caipira famosa.
O Vandré foi conferir. Fez alguns ensaios e ficou convencido. Com o Trio Marayá e o Trio Novo, formado por Heraldo do Monte na viola caipira, Théo de Barros ao vilão e Aírto Moreira na percussão, montaram um número muito forte. Uma queixada de burro, habilmente manipulada na primeira eliminatória por Aírto e na final por Manini, deu o toque final. O Chico se apoiou na tímida, porém cheia de joelhos e charme, Nara Leão. Os dois se completavam e a inclusão de uma bandinha de verdade resultou em outro número fortíssimo, apesar da timidez evidente que ambos demonstravam no palco.
As duas foram classificadas para a final. Estava na cara que uma delas seria a vencedora do festival. Os discos não paravam de tocar em todas as rádios, e a disputa entre o Chico e o Vandré virou o assunto do país. Primeiras páginas de todos os jornais. A brincadeira era: Você é dos “bandidos” ou dos “disparatados”?
Era incrível que um evento que acontecia em um pequeno auditório, com pouco mais de quinhentos lugares, tivesse adquirido aquela dimensão. Na noite da finalíssima, os teatros da cidade de São Paulo suspenderam seus espetáculos por falta de público, os cinemas ficaram às moscas e as ruas, vazias. Cheguei a receber uma comissão de produtores teatrais pedindo que mudasse o dia das apresentações do festival.
A apresentação das músicas foi inesquecível. A platéia dividiu-se. De um lado, a turma universitária que torcia apaixonadamente pelo seu representante, com o ingênuo e poético desfile dos personagens de uma cidade que parava para ver a banda passar tocando coisas de amor. Uma marchinha singela e de poucos atrativos musicais. Do outro, os que respondiam ao apelo engajado do cavaleiro de laço firme e braço forte de um reino que não tinha rei. Foi uma apresentação emocionante e consagradora, tanto para o Chico e sua companheira Nara, como para o Vandré, via Jair Rodrigues.
O júri estava reunido e os boatos, rolando. Ganhou o Chico! Não, ganhou o Vandré! Era de fato uma decisão difícil. Em uma reunião prévia dos jurados naquela tarde, para criar critérios na tentativa de evitar que a disputa entre as duas terminasse beneficiando uma terceira, o que seria desastroso, a tendência parecia dar a vitória ao Chico. Ficou acertado que a decisão definitiva só aconteceria depois da apresentação das músicas, para que fosse levada em consideração a reação do público.
O Paulinho de Carvalho temia que destruíssem o teatro caso o resultado não fosse do agrado daquela gente que, emocionada, cantava as duas favoritas. Era impossível saber qual era a preferida. Outro papo rolou pelos bastidores: o Chico não aceitaria a vitória. Eram boatos desencontrados e o júri, embalado por um dos mais emocionantes espetáculos musicais até então apresentados pela televisão brasileira, recorde de audiência para programas musicais, votou pelo empate, recebido pela platéia do Teatro Record com aplausos delirantes. E com evidente alívio pelo Paulinho de Carvalho...".
Fonte: Prepare seu Coração (A História dos Grandes Festivais) – Solano Ribeiro – Geração Editorial, 2002
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