quarta-feira, 19 de abril de 2006

O teu cabelo não nega

A marchinha carnavalesca já existia desde a década de 1920, com características definidas por seus sistematizadores. O prestígio do gênero, porém, somente se consolidou a partir de 1932, com o lançamento de "O Teu Cabelo Não Nega", uma das maiores marchas de todos os tempos. A história de "O Teu Cabelo Não Nega" é curiosa. Em sua forma original - um frevo intitulado "Mulata", dos irmãos pernambucanos Raul e João Valença -, a composição foi oferecida à gravadora Victor para eventual aproveitamento em disco.

Aprovando em parte a melodia, mas achando que a letra tinha um teor excessivamente regional, a direção da gravadora encarregou, então, Lamartine Babo de adaptar "Mulata" ao gosto carioca. Especialista na arte de melhorar canções alheias, ele logo pôs mãos à obra, transformando o frevo na vitoriosa marchinha.

Conforme análise do maestro Roberto Gnattali, que comparou as partituras, o trabalho de Lamartine Babo pode ser resumido no seguinte: "Na primeira parte a letra é a mesma, sendo as notas quase todas iguais, salvo as quatro últimas do verso final que Lamartine, muito sabidamente, ao invés de descer, como no original, subiu, encerrando a estrofe para cima. O ritmo é semelhante, mas o adaptador lhe deu mais balanço, através de antecipações rítmicas, quebrando a quadratura do original. A harmonia é idêntica, estando as melodias construídas com apenas dois acordes: tônica e dominante. Na segunda parte, letra e música são diferentes, com exceção de cinco notas do 9° para o 10° compasso (início da segunda frase musical) que Lamartine aproveitou. Aliás, é o melhor momento da música dos Valença nesta parte (mulata, mulatinha meu amor..), sendo a do Lamartine toda boa... A harmonia é praticamente a mesma (pelo menos nos pontos chave, nas cadências). As introduções são completamente diferentes".

Como se vê, Lamartine aproveitou o que tinha de aproveitar - como o excelente estribilho -, substituindo o que não prestava. Por exemplo, não há termo de comparação entre o humor pobre dos versos desprezados ("Tu nunca morre de fome / que os home / te dá sapato de sarto / bem arto / pra tu abalançá o gererê...") e a letra de Lamartine ("Quem te inventou / meu pancadão / teve uma consagração / a lua te invejando fez careta / porque mulata tu não és deste planeta..."). "Pancadão" e "não é do planeta" eram gírias da época, significando, respectivamente, "mulherão" e "pessoa ou coisa excepcionalmente valiosa". Concluída a marchinha, o compositor ofereceu-a à dupla Jonjoca e Castro Barbosa, que gravava na Victor. A propósito, conta João de Freitas, o Jonjoca: "'O Teu Cabelo Não Nega' nos foi mostrada por Lamartine num encontro, casual na Cinelândia. Achamos uma beleza. Então ele disse: 'É de vocês podem gravá-la!' Dias depois, como íamos gravar também o 'Bandonô', de minha autoria, ocorreu-me a infeliz idéia de propor: 'Ô Castro, vamos gravar essas músicas individualmente. Você fica com uma e eu com a outra'. Quanto à escolha, decidimos num cara ou coroa. Deu cara e eu fiquei com `Bandonô'...".

Quem também se interessou pelo "O Teu Cabelo Não Nega" foi Almirante. Depois de conhecer a marcha através do cantor Minona Carneiro, ele chegou a pedir à direção da Victor para gravá-la. Mas era tarde, o disco já fora gravado no dia 21 de dezembro de 1931 por Castro Barbosa, acompanhado pelo Grupo da Guarda Velha, na ocasião composto de piano, dois saxofones, trompete, banjo, baixo, prato, cabaça, omelê, tantã e coro de seis vozes masculinas e uma feminina. O arranjo e a direção musical eram de Pixinguinha. As primeiras tiragens do disco omitiram, por culpa da gravadora, a co-autoria dos Irmãos Valença na composição. O fato gerou uma questão judicial, com repercussão na imprensa, que acabou por fazer valer os direitos dos reclamantes.

O Teu Cabelo Não Nega (marcha / carnaval, 1932) - Lamartine Babo e Irmãos Valença

Disco 78 rpm / Título da música: O teu cabelo não nega!... / Autoria: Valença, Irmãos (Compositor) / Babo, Lamartine, 1904-1963 (Compositor) / Barbosa, Castro (Intérprete) / Coro (Acompanhante) / Grupo da Guarda Velha (Acompanhante) / Imprenta [S.l.]: Victor, 21/12/1931 / Nº Álbum 33514 / Gênero musical: Marcha

 E7             A   
O teu cabelo não nega mulata
  E7                 A
Porque és mulata na cor...
      E7             A     
Mas como a cor não pega mulata
  E7                 A
Mulata eu quero o teu amor

 A               B7    
Tens um sabor / Bem do Brasil
E7                 A
Tens a alma cor de anil
  A7                     D          B7
Mulata, mulatinha, meu amor / Fui nomeado
                   E7
Teu tenente interventor 

ESTRIBILHO

   A               B7
Quem te inventou / Meu pancadão
   E7             A
Teve uma consagração.....
    A7                     D
A lua te invejando fez careta
          B7                     E7
Porque mulata, tu não és deste planeta 

ESTRIBILHO

  A               B7
Quando meu bem / Vieste à terra
E7                  A
Portugal declarou guerra
         A7                  D
A concorrência então foi colossal
          B7                      E7
Vasco da Gama contra o batalhão naval 


Fonte: A Canção no Tempo - Vol. 1 - Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello - Editora 34.

2 comentários:

  1. Aposto que ninguém sabe a quem se referia Lamartine Babo quando diz "fui nomeado teu Interventor...".Quem era o Interventor da época? Um homem queridíssimo pelos cariocas, que veio a se tornar o maior Prefeito de todos os tempos: Pedro Ernesto.

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  2. Quando saiu este sucesso em 1932, Getúlio Vargas dominava o país. Não havia eleições, e ele nomeava interventores para governar os Estados, dando preferência aos tenentes que o apoiaram na revolução de 1930. Daí a frase de Lamartine Babo: "Fui nomeado teu tenente interventor."

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