Chico Buarque - 27/10/1967 - ARQUIVO/AE. |
Os bêbados zonzos, dançando trôpegos no meio da rua; os malandros, pobres acabrunhados; os meninos lépidos e tristes, são paisagens da música de Chico, mas são, antes, momentos dos olhos de Chico. Cenas que começaram, desde cedo, a ser impressas em sua alma. Afinal, alguns artistas têm alma branca como papel e nela se pode imprimir quase tudo.
Chico sempre foi da classe média carioca, paulista e, depois, carioca de novo. Suas paisagens são as mesmas de todos nós. Sua música brotou do meio da rua e do meio do povo. As imagens sempre estiveram aí, estampadas na cara do Brasil e alguém, como Francisco, como Chico, saiu a recolhê-las. Trôpego, como todos nós, emocionado, como todos nós, um pouco triste, muito poeta, brasileiro, com todos nós.
No final dos anos 50, havia um ouvido popular que fechava os anos dourados ao som de Frank Sinatra, Bing Crosby e Nat King Cole. Havia também aqueles mais moderninhos que curtiam Elvis Presley e The Platters. Chico estava entre eles, sem abandonar antigos sucessos de velhos sambistas como Noel Rosa, Ataulfo Alves e Ismael Silva. Mas, para o ouvido de Chico, o rock que nascia pareceu velho quando ele ouviu a voz e a bossa nova de João Gilberto na composição de Tom Jobim e Vinicius de Moraes.
Chico Buarque não sabia, mas aquela música influenciaria os rumos de sua futura vida artística. Aquela música misturava o molejo do morro e uma certa sofisticação do jazz. Era a contribuição brasileira para a modernidade da música. Era a criatividade do Brasil mostrando novos caminhos. Era Chico ouvindo até vinte vezes por dia Chega de saudade na casa da rua Buri. Era o Brasil de Juscelino Kubistchek, de Brasília, de Oscar Niemeyer, da delicadeza do homem cordial.
E foi essa mistura que lhe aguçou a vista e lhe abriu a alma. Foi essa mistura que o foi transformando no Chico brasileiro, capaz de reunir a poesia ao futebol, a feijoada à música, a solidariedade ao bom humor. Assim, 1965 viu nascerem os sessenta versos de Pedro pedreiro.
O estudante de arquitetura da FAU já tinha algum prestígio no mundo da música de São Paulo. Ele gravara seu primeiro compacto com Pedro Pedreiro. Os sambas tocados no Juão Sebastião Bar, no Quitanda e no Sambafo já haviam Ihe garantido participação na efervescência musical daquela geração. Assim, também em 1965, Chico era convidado por Roberto Freire, diretor do TUCA, a musicar Morte e Vida Severina, de João Cabral de Mello Neto. Era a segunda encomenda que Chico recebia e, como em todas as outras que viriam depois, deixou tudo para a última hora. Na Véspera do dia da entrega das músicas de Morte e Vida Severina, ele se trancou numa sala da casa da rua Buri para realizar, nervoso, o trabalho.
Apesar de o Brasil já estar sob as botas da ditadura, a televisão era ainda incipiente e a juventude da época respirava música brasileira, teatro brasileiro, literatura brasileira e cinema brasileiro. Morte e Vida foi um sucesso. Foi excursionar na Europa, onde ganhou o festival de teatro universitário de Nancy, na França. O cenário intelectual e artístico brasileiro - especialmente na música - rumava para uma fase de grande criatividade e qualidade, uma fase que acabou tendo como símbolo os festivais de música. Carlos Drummond de Andrade disse, em 1966, que o Brasil andava precisando de amor e que era isso que a marchinha, "tão antiga em sua tradição lírica", nos havia dado. O poeta falava de A banda, que acabava de ser uma das ganhadoras do II Festival de Música Popular Brasileira da TV Record. No mesmo ano de 66, Chico gravava seu primeiro LP e se tornava uma celebridade em várias partes do país e no exterior.
Mas o regime endurecia e esse endurecimento forçava aqueles que participavam do mundo da produção cultural a tomar posições. Em 67, as ruas brasileiras começavam a sentir melhor o estremecimento provocado pelos tanques e pelas botinas dos militares no poder. Por outro lado, a oposição amordaçada se dividia. A esquerda começava a se fragmentar em posições radicais e em posições que ainda acreditavam numa negociação. Assim acontecia também com a música. Caetano Veloso e Gilberto Gil encabeçavam o Tropicalismo que, segundo o próprio Caetano, queria fazer uma exploração estética também do que é feio, enquanto o Chico preferiu ficar com o que é bonito. Num país que ainda não havia entrado de vez na era da televisão, a música mostrava-se o catalisador do pensamento nacional.
Em 1968 a peça Roda Viva começou a ser encenada. Teve vida curta. O recrudescimento do regime e as organizações de direita se encarregariam de tirá-la dos palcos. Em São Paulo, a Universidade Mackenzie, na rua Maria Antônia, em frente à USP era um dos centros do temido CCC - Comando de Caça aos Comunistas. Uma organização que recrutava seus membros entre os jovens menos politizados (e geralmente mais ricos) e organizava ações violentas contra quem eles chamavam de comunistas ou inimigos do regime. Um desses alvos foi a peça de Chico.
No dia 17 de julho, um dos grupos do CCC invadiu o Teatro Galpão, em São Paulo. Os cenários foram destruídos e os atores espancados. A medida que o regime dos generais endurecia, seus seguidores iam mostrando as unhas. Do outro lado, a oposição cavava subterrâneos, nos quais muitos se perderiam na clandestinidade imposta pelo AI-5, de 13 de dezembro de 1968. Era o início de um longo processo que culminaria, muitos anos depois, num ouvido popular diferente.
A música de Chico, de Tom Jobim, de Vinicius e Toquinho, de Edu Lobo, de Carlos Lyra, de Caetano Veloso, de Gilberto Gil começava, lentamente, a escapar do popular. A música de Chico continuaria a ter como paisagem o bêbado, o malandro, o pivete, a prostituta, o que se alimenta de luz, mas os ouvidos desses mesmos personagens começavam, lentamente, a deixar de ouvir. A essas alturas, o Brasil delicado, do final dos anos 50 e do começo dos anos 60, começava a deixar de existir.
Antes mesmo do AI-5, a música de Chico não conseguia escapar do rótulo de alienada. Em julho de 68, Bom Tempo ficou em segundo lugar na Bienal do Samba, que foi vencida por Baden Powell, com Lapinha. Bom Tempo foi vaiada e criticada, pois falava de dias claros quando o horizonte brasileiro se escurecia. Em setembro foi pior. Na final do Festival Internacional da Canção, se enfrentaram Sabiá, de Chico e Tom, e Prá não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré. A música de Chico e Tom recebeu a maior vaia da história dos festivais, mas ainda assim foi escolhida vencedora. Naquele momento, a música de Vandré já se tornara hino da oposição e Sabiá parecia uma música mais de nostalgia, saudosista.
O tempo, no entanto, mostrou que Tom e Chico haviam sido premonitórios. Poucos anos mais tarde, a saudade e as imagens de casa de Sabiá eram o hino do exílio a que foram obrigados inúmeros brasileiros, Chico inclusive.
Quando o AI-5 ganhou as ruas, o povo perdeu a praça. Para Chico foram cinco dias de angústia. Até que no dia 18 de dezembro ele acordou com os militares já forçando a porta de seu apartamento. No dia 3 de janeiro de 1969, ele e Marieta embarcavam para Cannes, na França, onde aconteceria o Midem, a grande feira da indústria fonográfica. De lá, os dois seguiram para a Itália, onde Chico era aguardado com grande ansiedade.
A gravadora tinha uma estratégia para colocá-lo no circuito internacional. Uma estratégia que acabou naufragando. Chico gravou um disco, misturando faixas de seus dois LP's brasileiros, que não deu em nada. Mas, ainda assim, não faltavam convites para aparições na TV e Chico chegou a ter um programa de rádio. Porém, sua popularidade caiu rapidamente. A novidade de um cantor brasileiro já não chamava a atenção e o trabalho foi se tornando escasso. Por outro lado, a mão de ferro da ditadura impedia sua volta ao Brasil. Antes mesmo de sua viagem, no dia 27 de dezembro de 68, Caetano e Gil haviam sido presos. E até aquele momento, já no final de janeiro, continuavam detidos, com as cabeças raspadas. O jeito foi ficar. A primeira filha do casal, Sílvia, acabou nascendo em solo italiano, em 28 de março de 69.
Havia a impossibilidade de voltar ao Brasil. Mas havia, também, a vontade de voltar ao Brasil. E ele acabou retornando, no início de 1970. Não sem antes ouvir o conselho de Vinicius: volte fazendo barulho. O aeroporto do Galeão presenciou a chegada de Marieta, Sílvia e Chico, que regressava ao país a bordo de um grande esquema de divulgação, com especial na TV Globo e apresentação na boate Sucata, além do lançamento de um novo LP o Chico Buarque n° 4.
Mas, o Brasil que recebeu Chico já não era o mesmo que o vira sair. No poder, a ditadura impunha seu general mais duro, Emílio Garrastazu Médici. Nos quartéis, a tortura aumentava em ritmo e requintes. Nas ruas, uma mistura de pão e circo levava os brasileiros a andarem em fusquinhas com adesivos "Ame-o ou deixe-o", festejando o milagre brasileiro. Na produção cultural, estava instituída a censura prévia. E a música de Chico Apesar de você passou pela censura.
Em 1971, foi lançada Construção. Chico dava tons concretos à realidade dura dos brasileiros das classes mais populares. Construção deveria incomodar a censura, mas passou. A história do brasileiro trabalhador, flagrado em sua pequenez, flagrado em seu sufoco diante das grandes estruturas de poder que se formavam no começo dos anos 70, flagrado em sua impossibilidade de ação. Chico mostrava os tons cinza e negro do pão e circo.
Sem querer, Chico se transformava no símbolo de luta contra a ditadura, título que lhe dificultou muito a vida em relação aos censores. Suas músicas passaram a ser sistematicamente proibidas. Foi assim com Minha história, com Tanto mar, com Atrás da porta e com Cálice. Foi assim com Calabar, uma peça de teatro, um projeto seu e de Ruy Guerra, que a ditadura proibiu sem maiores explicações, deixando um prejuízo de 30 mil dólares investidos na época.
Chico percebeu que nada que levasse seu nome passaria incólume pelos censores. Foi aí que nasceu Julinho da Adelaide, um personagem que Chico criou para tentar fugir à marcação dos censores. Julinho compôs três músicas: Acorda amor, Jorge Maravilha e Milagre Brasileiro. Julinho morreu em 75, depois que uma matéria do Jornal do Brasil desmascarou a verdadeira identidade do sambista. Por esse tempo, a figura de Chico estava muito politizada. Ele diz que, nessa época, era mais aplaudido quando entrava no palco para cantar do que quando saía. Em 75, Chico decidiu se afastar das apresentações. Ficou nove anos longe e sua volta foi, como ele mesmo diz, num "meio-show" com Toquinho, em Buenos Aires, em 84.
No final da década de 70, João Batista Figueiredo era o general da vez e a crise do petróleo fazia caírem por terra as ilusões do milagre brasileiro. A ditadura perdia a única justificativa possível: o crescimento econômico. Os generais preparavam sua saída e anunciavam a anistia aos exilados. Chico constatava a existência de um Brasil diferente. Muitas casas não tinham sequer fogão, mas tinham um aparelho de TV. Era um país cujo ensino foi ficando de lado e cuja classe média começava a se mediocrizar em frente à televisão. Foi no final dos anos 70 que surgiu Bye bye Brasil, mais um trabalho de encomenda, para o fìlme de Carlos Diegues.
Os anos 80 começavam e Chico comprou um terreno no Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro, e inaugurou o famoso campinho de futebol onde, até hoje, realiza torneios e mostra as habilidades de centroavante no time do Politheama. A década de 80 marcou, também, a volta de Chico a programas da Rede Globo. Ele e a emissora tiveram vários problemas durante a década de 70.
Ainda nos anos 60, Chico deveria apresentar um programa com Norma Bengell, o Shell em Show Maior, mas, confirmando a fama de não levar muito jeito para o vídeo, só apareceu no primeiro dia de gravação. A Globo decidiu processá-lo por quebra de contrato. A situação só se resolveu com a interferência de Walter Clark, então superintendente da emissora. Ele propôs uma troca: Chico faria uma música para o II Festival Internacional da Canção, de 67, e a emissora retiraria o processo. Chico, de má vontade, criou Carolina. Finalmente, depois desse longo desentendimento, em 86, Chico fez seu programa na Globo, em parceria com Caetano: era o Chico e Caetano, levado ao ar uma vez por mês.
O país vivia ainda a ressaca da campanha das diretas de 84 e estava mergulhado numa profunda crise econômica, a pobreza das cidades aumentava e a música se tornava, cada vez mais, um fenômeno ligado quase exclusivamente à mídia de televisão. Foi de 83 um dos últimos grandes sucessos de Chico: Vai passar. O país já alcançava a marca de 120 milhões de habitantes, mas o crescimento não se refletia nas vendagens de boa parte da MPB. Já no final da década de 80, Chico ratifica sua postura ideológica e dá seu apoio à candidatura de Luiz Ignácio Lula da Silva, nas primeiras eleições diretas para presidente, depois de quase trinta anos de presidentes escolhidos indiretamente.
Os anos 90 começaram e o popular, de alguma maneira, já havia perdido a dimensão de Chico e de boa parte daqueles que fizeram a MPB dos anos 60 e 70: eles viraram música apenas para uma parte da classe média. Em meados dos anos 90, o Brasil ainda é um país indeciso entre o asséptico e o plástico de Miami e a sujeira e a lama das favelas e dos conflitos de terra. O mesmo tema de 65, em Morte e Vida Severina, continua vivo no final do século.
A posse da terra leva fazendeiros a contratar mortes e leva os sem-terra a organizar um movimento que propõe invasões. Os conflitos se acirram e o ano de 96 vem encontrar Chico mais uma vez envolvido com o popular. Ele prepara um álbum com músicas que falam desse movimento e cede os direitos autorais aos sem-terra. O ouvido popular mudou sua sintonia, mas o compositor continuou lá, popular, brasileiro.
Chico Buarque - Letras, cifras e gravações
Fontes: MPB Compositores - Editora Globo.
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