Muitos dos nossos musicólogos e folcloristas, quando falam do samba carioca, música que, queiram ou não, é a mais difundida, mais amada e mais bela do Brasil, perdem-se numa desconcertante série de afirmativas não se sabe onde encontradas, tirando delas conclusões as mais levianas. Raras as exceções.
De origem africana, o samba, também chamado primitivamente "baiano", sofreu, desde sua implantação no Brasil, múltiplas transformações.
A música dos brancos, música religiosa, a ópera e a opereta (a primeira trazendo contribuição italiana, a segunda, a marca vienense), mais as cançonetas francesas (no princípio do século, em grande voga entre nós), a valsa, a polca, o shottisch, a mazurca, a quadrilha, todos esses elementos, e muitos outros, fizeram a amálgama que é o samba dos nossos dias.
O berço do samba atual é a cidade do Rio de Janeiro. Depois de uma época em que o tanguinho brasileiro era nome e disfarce para autêntica música nossa, depois do maxixe, fundindo toda a beleza e musicalidade de um ao buliçoso e brejeirice do outro, surgiu o samba.
O samba é um só. Os amantes de classificações mais ou menos arbitrárias falam de samba de morro, como o da primeira fase, samba da cidade, segunda etapa, esquecendo-se de que a subida ao morro, das populações da cidade, por motivos único e exclusivamente econômicos, só se deu depois do aparecimento "oficial" do primeiro samba, com partitura impressa e gravado em disco fonográfico comercial: o famoso Pelo telefone, de Ernesto dos Santos (Donga), em 1917, samba da cidade.
Por outro lado, as chamadas escolas de samba, também apontadas como precursoras, são ainda mais recentes, a primeira delas sendo fundada em 1923, no Estácio de Sá, bairro que fica no centro da cidade (Escola de Samba Deixa eu Falar).
Noel Rosa, simplificando a questão, disse, em uma de suas peças mais conhecidas, que "o samba nasce é do coração". Imagem de poeta. Mas a verdade é que o samba nasce onde se encontra um sambista; no morro, nos subúrbios distantes, na avenida Rio Branco, num apartamento no Catete, num café da Lapa ou em qualquer outro lugar. Sambista é o que tem a "bossa", palavra criada por eles e que significa musicalidade, ritmo, poesia e espírito carioca.
Alfabetizados ou não, têm saído deles as obras primas de um vasto cancioneiro popular, ao lado dos tanguinhos de Nazareth, das canções de Chiquinha Gonzaga, das valsas de Eduardo Souto, dos choros de Calado, Anacleto Medeiros e Pixinguinha.
Um pouco da história do samba
Depois do aparecimento de Pelo telefone, surgiriam as primeiras produções de João Barbosa da Silva, o Sinhô. Tipo autêntico de carioca, mulato contador de vantagens, gabola e valente, gaforinha desarrumada, pianista das gafieiras, amigo de políticos importantes, tipo querido e respeitado dentro da classe a que pertencia, Sinhô foi um grande artista. Tocando todos os instrumentos, o piano e o violão, bem como diversos outros de sopro, suas músicas tinham uma espontaneidade e um frescor raramente atingidos por outros. Seus versos, apesar das imagens rebuscadas e pernósticas, traziam a marca do dono e uma invejável poesia, primitiva e autêntica.
Peças como Jura, Cansei, A medida do Senhor Bonfim, A favela vai abaixo, Sabiá etc. são, ainda hoje, das melhores produzidas pela lira popular carioca. Malandro sabido, não tinha escrúpulos em se apropriar de certos refrões alheios, mas sempre melhorando-os e dando-lhes o sopro de sua personalidade. É dele a frase que ficou célebre: "Samba é como passarinho, de quem pegar..."
Rival de Sinhô, José de Luis de Morais, o Caninha, celebrizou-se com peças como Ó que vizinha danada e, mais recentemente, com É batucada. Com mais de oitenta anos de idade, Caninha ainda compõe sambas e freqüenta as rodas boêmias dos subúrbios cariocas.
José Francisco de Freitas foi outro valor da época. Dorinha, meu amor e Zizinha são pontos altos de sua produção numerosa. Também merece menção especial o compositor Luis Nunes Sampaio, o Careca, autor de Chuva não mata ninguém e do famoso Ai, seu Mé!
Tem se especializado no choro, gênero eminentemente instrumental, Alfredo da Rocha Viana (o Pixinguinha), talvez o nosso maior músico popular de todas as épocas, também produziu alguns sambas dos melhores: Samba de negro, Promessa e Festa de branco. Sua obra como chorão, orquestrador e regente é das maiores.
Outro que se especializou mais nas valsas e canções, o maestro Eduardo Souto, autor de Despertar da montanha, das valsas que celebram as quatro estações do ano, de quando em vez compunha sambas de sucesso, como é o caso de Tatu subiu no pau.
Mais recentes são os sambistas Ismael Silva que, com seu parceiro Nilton Bastos, fornecia o repertório principal dos cantores Francisco Alves e Mário Reis; João da Baiana, especialista nos corimas afro-brasileiros, mas autor de sambas como Cabide de molambo; Cícero de Almeida - O Baiano, Mário Travassos de Araújo, Walfrido Silva, Gadé, Leonel Azevedo, J. Cascata, Almirante, também cantor e hoje um dos melhores conhecedores da nossa música popular, Alcebíades Barcelos, Antonio Vieira Marçal, etc.
Os legendários
Ao lado desses, muitos outros faziam seus sambas sem procurar o disco e a celebridade, raramente abandonando os seus subúrbios ou os seus morros, funcionando nas suas próprias festas e entre seu adeptos. Gradim, Canuto, Brancura, Baiaco e, principalmente, Agenor de Oliveira — o Cartola, são os mais notáveis. Raramente gravaram discos e, quando isso acontecia, muitas vezes suas composições saíam com nomes de outros autores. Todos sempre foram, no entretanto, figuras das mais respeitadas entre seus pares.
Noel e Ari
Não esqueçamos, porém, os dois maiores compositores populares da segunda geração que são, indubitavelmente, Noel Rosa e Ari Barroso.
Nascido no dia 11 de dezembro de 1910, Noel Rosa pertencia à tradicional família carioca. Na casa modesta da rua Teodoro da Silva, nasceu, viveu e morreu. Vila Isabel foi a sua paixão, que cantou em mais de um samba inspirado. Chegando a freqüentar o segundo ano de medicina, com cultura acima do comum dos sambistas, era exímio no versejar, improvisando com facilidade espantosa. Violinista e boêmio, logo abandonou os estudos, passando a dedicar sua vida à música popular. Embora contando com diversos parceiros, era ele próprio um melodista dos melhores e não um simples letrista, como querem alguns. Várias de suas peças (letra e música) são verdadeiros clássicos do samba, como Até amanhã, Palpite infeliz, Silêncio de um minuto, Com que roupa? e muitos outros. Com Vadico, seu principal parceiro compôs Feitiço da Vila, Feitio de oração e mais cerca de oito números. Noel Rosa é, até hoje, um dos compositores mais amados pelo público de todo o Brasil e suas músicas são das mais gravadas e regravadas pelas nossas fábricas de disco.
Mineiro de Ubá, Ari Barroso é verdadeiro talento. Bacharel em direito, jornalista e ex-político militante, além de radialista dos mais populares, foi como compositor que seu nome se tornou imorredouro. Começando num estilo que lembrava o de Sinhô, com peças como Vou à Penha e Amizade, logo encontrou o seu próprio rumo a partir de Faceira, samba que já traz a marca inconfundível do seu autor. Algumas centenas de músicas constituem sua bagagem autoral, sendo que muitas delas — como Maria, Rancho fundo, Morena Boca de Ouro e, principalmente Aquarela do Brasil — são bastante conhecidas no mundo inteiro, levando o nome de Ari Barroso por todos os cinco continentes e sua música aonde quer que haja uma vitrola ou uma estação de rádio. De inspiração inesgotável, continua a produzir jóias musicais que são disputadas por intérpretes e editores.
Outros compositores
Impossível citar, no espaço limitado de um simples artigo, todos os compositores de mérito que têm cultivado o samba. Mas convém não esquecer Henrique Vogeler — autor de Ai, ioiô, Lamartine Babo — o rei da marchinha carnavalesca mas também sambista, Nássara, Geraldo Pereira, Bucy Moreira, Paulo da Portela, Custódio Mesquita, Evaldo Rui, Romualdo Peixoto, Francisco Matoso, Haroldo Barbosa, João de Barro, Bonfiglio de Oliveira, Jararaca, Vicente Paiva e os novíssimos Billy Blanco, Monsueto e Antonio Carlos Jobim (Tom).
O samba, de novo
Houve época em que o samba foi relegado a um segundo plano, não pelo povo, mas pelas estações de rádio e pelos fabricantes de discos, que se deixavam levar por compositores do chamado samba-slow, sem ritmo e sem características e influenciados pelos boleros e pelos mambos. Mas felizmente, tudo isso passou. O samba voltou a se apresentar com toda a sua grandeza, com seus tamborins e seus surdos, seus pandeiros e seus ganzás, para a alegria de um povo que tem na sua música popular um dos índices mais positivos de sua força e sua personalidade.
Fonte: "Falando de samba". Revista Esso. Rio de Janeiro, fevereiro de 1957. Não foi possível identificar o nome do autor.