O 12 de fevereiro de 1938 não seria diferente dos outros dias em Duas Barras, no interior do Rio de Janeiro, se não chovesse tanto - como se o mundo fosse acabar em água - e se o calendário não registrasse um frustrante e encharcado sábado de carnaval. Na sua casa simples, o meeiro Josué Ferreira ouvia a água da chuva bater no teto de zinco e, nervosamente, fumava um cigarro atrás do outro.
Sua ansiedade só foi quebrada quando a parteira botou metade de sua cara escura na porta entreaberta do quarto para anunciar: "Nasceu! É um menino". Doido de felicidade, Josué jamais poderia imaginar que seu único filho homem, entre quatro mulheres, teria seu destino selado pelo som do batuque que se ouvia ao longe. Com o recém nascido nos braços, a mãe, dona Teresa, abriu-se num sorriso e, trazendo-o para bem junto do peito, não hesitou: "Vai se chamar Martinho José" (foto acima a esquerda: ginga de sambista e música do morro sob a farda de sargento do exército).
Alegria em casa de pobre é um artigo de luxo que dura pouco e, na de Josué e Teresa, ela foi imediatamente substituída pelo desalento de que o pequeno Martinho era, na verdade, mais uma boca para dividir o minguado pão de cada dia. Convencidos de que o trabalho instável de fazenda em fazenda não dava mais para sustentar sua prole, eles decidiram embarcar no sonho de uma vida melhor. Afinal, Josué era alfabetizado e Teresa possuía mãos milagrosas quando assumia o comando de uma cozinha. Juntaram filhos, trapos, ambições e tomaram um trem de segunda classe para o Rio de Janeiro. Os Ferreira foram começar de novo num casebre da então Serra dos Pretos Forros, num lugar conhecido como Boca do Mato. Triste engano. "Foi brabo", recorda Martinho. "Na favela, a água era escassa, não tinha luz, não tinha nada."
No clube Vegas, n o Rio, Martinho divide o palco com Candeia. |
Se em Duas Barras o meeiro Josué era um homem humilde, mas respeitado, na então capital da República ele e os seus conheceram a mais cruel de todas as misérias: a falta de esperança. Acossados por uma perversa realidade, cada um deles teve de se virar como pôde. Teresa e as meninas foram fazer faxina e outros afazeres domésticos em casas de família, enquanto o menino Martinho se empenhava nas mais variadas tarefas - como engraxar sapatos e limpar caixas de gordura - que lhe rendessem alguns trocados para reforçar o fraco orçamento familiar. A paisagem de miséria e desesperança, no entanto, foi construindo um fosso entre Josué Ferreira e o mundo. Um dia ele não aguentou mais e se matou.
Martinho brilha no desfile que consagrou a Unidos de Vila Isabel, em 1988. |
Na manhã seguinte, ainda aos frangalhos, Teresa comunicou aos cinco filhos que não lhe restara outra alternativa senão a de distribuí-los pelas casas dos fiéis da Igreja Cristo Redentor, paróquia que os Ferreira frequentavam no subúrbio de Lins de Vasconcelos. Martinho se tornou uma espécie de pajem e empregado doméstico de Dona Ida e Dona Alzira, duas professoras solteironas que lhe ensinaram as primeiras letras e o empurravam para a vida sacerdotal. Filhas de Maria, elas queriam transformá-lo em padre. Mas a música ia entrando no seu cotidiano por meio das ladainhas e das folias de reis das festas populares: "O meio em que eu vivia era pleno de sanfonas e foguetes", recorda o compositor.
Porém, até os 16 anos, era o mundo da bola que o fascinava. Martinho sonhava com o dia em que, envergando a camisa do Clube de Regatas Vasco da Gama, pisaria a grama verde do Maracanã para brilhar com á mesma intensidade de seu ídolo Ademir Menezes. Até que ele levava jeito defendendo as cores verde e branca do Boquense, mas, agora se convence, nunca passou de um projeto de craque. O futebol, com suas farras e excursões, fez, no entanto, desabrochar o compositor. Entre os companheiros, ele cantava paródias que compunha, colocando letras em melodias de sucesso naqueles anos 50. Ouvindo a marchinha que Martinho havia composto para a torcida de seu time, Tolito, o diretor de harmonia da recém-fundada Aprendizes da Boca do Mato, vislumbrou seu talento e o convidou para se integrar à escola de samba.
No seu segundo carnaval, Martinho já ganhou o respeito e a admiração dos mais velhos, ao escrever o samba-enredo Carlos Gomes. Entre os sambistas de renome, passou a correr a notícia de que na Aprendizes estava surgindo um menino genial, um compositor de futuro, e muitos deles foram até a Boca do Mato para conhecê-lo. Foi assim que, pela primeira vez, ele viu celebridades como Silas de Oliveira, Walter Rosa e Padeirinho e passou a ser uma presença constante na quadra de grandes escolas, como Portela, Mangueira, Império Serrano... "Eu nem sabia quem era quem", confessa ele. "Achava, por exemplo, que Cartola era uma lenda."
Nem passava por sua cabeça tornar-se um compositor profissional, embora sua pequena e aguerrida escola dependesse cada vez mais de suas criações no carnaval. Achava que samba não dava camisa, não garantia o futuro de ninguém. Por isso, fez um curso de auxiliar de químico industrial no Senai e, durante o serviço militar, conseguiu com muito esforço ser designado para trabalhar na farmácia do quartel. Botou fé na carreira militar. Foi promovido a cabo, chegou ao posto de sargento e, nas horas de folga, compunha sua história particular do Brasil para a Boca do Mato contar na avenida. Escreveu sambas-enredo sobre o escritor Machado de Assis, o almirante Tamandaré, o diplomata Rui Barbosa e contou, entre outros acontecimentos, a independência e a construção do Rio de Janeiro.
Companheiro de palco e de samba: Martinho da Vila e Paulinho da Viola. |
Promovida ao primeiro grupo, em 1960, numa sofrida escalada, a Boca do Mato voltou ao fundo do poço no ano seguinte. Teve o azar de entrar na Rio Branco logo depois do Salgueiro, que naquele carnaval promovia uma revolução com o enredo "Zumbi das Palmares". Ninguém viu a Boca do Mato, ninguém ouviu o samba de Martinho.
A frustração fez que ele cedesse ao assédio da Unidos de Vila Isabel. Na época, ele já namorava Anália Mendonça, que viria ser a mãe de Martinho Antonio, Analimar e Martinália - seus filhos mais velhos. Recebido de braços abertos, chegou cantando "Boa Noite Vila Isabel", um samba de quadra: "... Boa noite, diretor de bateria/ Quero contar com a sua marcação/ Boa noite, sambistas e compositores/ Presidente e diretores/ Para a Vila eu trago toda a minha inspiração...".
Um ano depois, em 1967, acertou na mosca ao entregar à escola o antológico Carnaval de Ilusões, feito em parceria com Gemeu, samba-enredo que avalizou a presença da Vila Isabel entre as grandes agremiações. Nascia o Martinho da Vila. Em seguida, ele conheceu o sucesso nacional com "O Pequeno Burguês", e sua vida nunca mais foi a mesma.
Pediu dispensa do exército, tirou a mãe e as irmãs das casas das patroas e adquiriu imóveis, inclusive um sítio na mesma região de Duas Barras, onde os Ferreira comeram o pão que o diabo amassou. "Achava que tudo seria passageiro e tratei de aproveitar", revela ele. "Na minha casa tinha festa todo dia." Inspirado em tanta alegria, compôs "Casa de Bamba" e botou para quebrar, em 1968, no IV Festival de Música Popular Brasileira: "...Na minha casa/ Todo mundo é bamba/ Todo mundo bebe/ Todo mundo samba...".
Martinho com a saudosa Clara Nunes. |
Trinta anos de carreira depois, é fácil constatar que Martinho José Ferreira conseguiu com sua ginga mas acima de tudo com sua integridade e com a força de seu canto - percorrer caminhos difíceis, superando obstáculos que acabaram com muitas outras carreiras promissoras.
Fontes: MPB Compositores Martinho da Vila - Editora Globo - 1996
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